Uma das questões mais intrigantes para quem se
debruça sobre os fenômenos oníricos pode ser resumida pela seguinte
questão: qual mecanismo poderia explicar a geração de imagens durante os
sonhos?
Gostaria de introduzir esse assunto com a descrição de um fato ocorrido recentemente.
Vigília:
Estava dirigindo o
carro por ruas próximas à residência em que eu morava quando ainda era
pequeno. Dirigia rumo à casa de meu pai que, por estar muito doente,
necessitava de meu auxílio naquela tarde. No caminho, lembrei da casa em
que morei na infância e, após alguns minutos, encontrava-me passando em
frente a um grande muro, à minha direita, por tras do qual pude
perceber a existência de uma construção antiga - na verdade um convento
de freiras, rodeado por um grande jardim. Nesse momento, ocorreu-me que
aquela construção pertencente à Igreja sobreviviria intacta às mudanças
do entorno, pois a Igreja manteria intocável suas dependências, apesar
da vizinhança estar em constante alteração.
Esse pensamento havia
interrompido uma série de especulações que eu fazia solitariamente no
carro naquele momento, enquanto dirigia, acerca da seguinte indagação:
por que alguns pensamentos e emoções são convertidos em imagens – nos
sonhos – enquanto que outros permanecem como pensamentos oníricos ?
Sonho:
Bem, ao final daquela
noite tive um sonho: encontrava-me com meu pai, andando na rua em que
morava quando ainda era pequeno e passamos bem em frente de nossa antiga
casa. A casa estava em ótimas condições, recém reformada e pintada – o
que me causou espanto ocorrendo-me o pensamento (onírico) de que até bem
pouco tempo eu havia passado em frente e notei que ela estava
envelhecida e necessitando de reformas (isso ocorreu de fato na
vigília). Andamos mais um pouco naquela rua e avistei, à minha esquerda,
uma magnífica construção antiga (que, de fato, não existe naquela rua),
muito branca e iluminada. Observei ao meu pai que não lembrava daquela
construção ao que ele me respondeu que se tratava de uma construção
pertencente à Igreja. Ocorreu-me o pensamento (no sonho) de que o
excelente estado daquela bela construção se devia justamente ao fato de
pertencer à Igreja, que a mantinha impecável. Pude notar que em seu
interior havia uma espécie de jardim, muito belo, onde algumas pessoas
rezavam. Fim do sonho.
A conexão entre essas
duas experiências é evidente. O que a torna notável é o fato de que a
transposição entre a experiência da vigília e a vivência onirica ocorreu
justamente quando estava pensando nesse assunto, ou seja, sobre o
mecanismo de transposição da vivência vígil para a onirica. É possível
que isso tenha aberto uma “porta” entre esses dois mundos – ou, de uma
forma mais singela, diríamos que o sonho buscou responder à indagação
que eu mesmo formulava enquanto dirigia – uma espécie de incubação. A
questão aqui se refere à eficácia e exatidão da incubação, ou seja, qual
mecanismo tornou possível uma incubação tão perfeita e de que modo a
incubação se materializou no sonho: quais imagens (na vigília)
permaneceram imagens (no sonho) e quais pensamentos analíticos (na
vigília) permaneceram pensamentos analíticos (no sonho).
Por que alguns
pensamentos (e emoções) são transpostos para o sonho sob a forma de
imagens, enquanto que outros pensamentos mentêm sua natureza intacta, ou
seja, permanecem como pensamentos analíticos no sonho ? Um
neurocientista poderia dizer simplesmente que certas conexões são feitas
no hemisfério direito do cérebro (convertendo-se em imagens oníricas),
enquanto que outras são elaboradas no hemisfério esquerdo –
convertendo-se em pensamentos analíticos oníricos. Porém, essa é uma
meia resposta, pois a questão permanece intacta: qual a motivação para
que esse mecanismo seja desencadeado dessa forma ?
Alguém poderia dizer: E daí ? Qual a relevância disso tudo ?
Para quem se interessa
sobre lucidez onírica é extremamente importante dominar a técnica de
incubação de sonhos. Lembremos que a prórpia lucidez é parte do sonho.
Embora o SL seja para muitos um paradoxo – pois a pessoa desenvolve a
capacidade de recobrar a consciência vígil enquanto dorme – de fato
permanecemos, num sentido metafísico mais amplo, sob domínio do sonho.
Isso porque a lucidez convencional vígil, ainda que transposta para o
sonho, nada mais é do que a consciência dual, onde impera a separação
sujeito/objeto, eu/mundo. No sonho lúcido, o ego onírico usualmente
opera de maneira semelhante ao ego na vigília, muito embora o entorno
seja um produto de sua mente – e no SL isso é reconhecido de maneira
analítica. A superação completa dessa dualidade ocorrerá na fase
seguinte, quando o praticante exercita a consciência pós-sonho (ioga do
sono).
Assim, insisto, a lucidez é parte do sonho, pois a consciência convencional “EU” também é produto do pensamento: eu existo/o mundo existe.
A pessoa pode incubar a lucidez – há uma gama de técnicas para fazê-lo – porem, muitas vezes o pensamento
do tipo “estarei lúcido esta noite” ou “reconhecerei o sonho enquanto
tal esta noite”, poderá converter-se não em lucidez onírica convencional
(pensamento crítico/analítico onírico: isto é um sonho), mas num conjunto de imagens e enredo simbólico acerca dessa preocupação.
E nesse caso, a incubação não surte qualquer efeito. A solução
convencional para isso é propor que o praticante esteja fortemente
imbuído do proprósito de recobrar a lucidez, valendo dizer, atribua um
conteúdo emocional ao propósito de ficar lúcido. Dessa forma,
pressupõe-se que o conteúdo analítico/crítico da vigília seja transposto
intacto para o ambiente onírico por meio das emoções.
A questão é complexa, pois, novamente, a preocupação com a lucidez pode se converter em imagens oníricas, desencadeando o processo onírico não-lúcido.