quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

SOBRE ENSONHAR - Carlos Castañeda

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— Vou ensinar a você o primeiro passo para o poder — disse Dom Juan, iniciando sua instrução sobre a arte de sonhar. — Vou ensinar como estabelecer o sonhar.

— O que significa estabelecer o sonhar?

Significa ter um comando preciso e prático sobre a situa­ção geral de um sonho. Por exemplo, você pode sonhar que está em sua sala de aula. Estabelecer o sonhar significa que você não deixa o sonho virar outra coisa. Você não salta da sala de aula para as montanhas, por exemplo. Em outras palavras, você controla a visão da sala de aula, e não deixa que ela desapareça enquanto você quiser.

— Mas é possível fazer isso?

— Claro que é possível. Esse controle não é diferente do controle que temos sobre qualquer situação em nossas vidas cotidianas. Os feiticeiros estão acostumados com ele e conse­guem-no sempre que desejem ou precisem. Para se acostumar com ele você deve começar a fazer uma coisa bastante simples. Esta noite, em seus sonhos, você deve olhar para as mãos.

Não falamos muito mais sobre isso na consciência de nosso mundo cotidiano. Em minhas recordações das experiências na segunda atenção, entretanto, descobri que tivemos uma troca mais do que extensiva. Por exemplo, eu expressei meus sentimentos sobre o absurdo da tarefa, e Dom Juan sugeriu que eu deveria encará-la em termos de uma busca divertida, em vez de solene e mórbida.

— Seja tão pesado quanto quiser ao falarmos sobre sonhar disse ele. — As explicações sempre pedem pensamentos profundos. Mas quando estiver sonhando, seja tão leve quanto uma pena. Sonhar tem de ser feito com integridade e seriedade, mas no meio de risos e com a confiança de quem não tem qualquer preocupação. Somente nessas condições nossos sonhos podem se transformar no sonhar.

Dom Juan me assegurou que havia escolhido aleatoriamente minhas mãos para que eu olhasse nos sonhos, e que seria válido olhar para qualquer outra coisa. O objetivo do exercício não era descobrir uma coisa específica, mas empenhar minha atenção sonhadora.

Dom Juan descreveu a atenção sonhadora como o controle que adquirimos sobre nossos sonhos depois de fixar o ponto de aglutinação em qualquer posicionamento novo para o qual ele tenha se deslocado durante os sonhos. Em termos mais gerais, ele chamava a atenção sonhadora de uma faceta incompreensível da consciência, que existe por si, esperando o momento de atraí-la, um momento em que lhe daremos um objetivo, uma faculdade oculta que todos nós temos em reserva, mas que nunca temos a oportunidade de usar.

As primeiras tentativas de procurar minhas mãos no sonho foram um fiasco. Depois de meses de esforços mal sucedidos desisti e reclamei de novo com Dom Juan sobre o absurdo dessa tarefa.

— Existem sete portões — ele disse em resposta. — E os sonhadores precisam abrir todos eles, um de cada vez. Você está diante do primeiro portão que precisa ser aberto caso deseje sonhar.

— Por que você não me disse isso antes?

— Teria sido inútil falar sobre os portões do sonhar antes de você bater de cabeça contra o primeiro. Agora você sabe que há um obstáculo e que precisa superá-lo.

Dom Juan explicou que há entradas e saídas no fluxo de energia do universo, e que no caso específico do sonhar há sete entradas experimentadas como obstáculos, que os feiticeiros cha­mam de sete portões do sonhar.

— O primeiro portão é o limiar que precisamos atravessar tornando-nos conscientes de uma sensação particular antes do sono profundo. Uma sensação como um peso agradável que não nos deixa abrir os olhos.

Chegamos a esse portão no instante em que nos conscientizamos de que estamos caindo no sono, suspen­sos na escuridão e na sensação de peso.

— Como me conscientizo de que estou caindo no sono? Existem etapas a seguir?

— Não. Não existem etapas a seguir. Só precisamos intentar que temos consciência de estar caindo no sono.

— Mas, como se intenta que estamos conscientes disso?

— É muito difícil se falar a respeito do intento. Eu, ou qualquer outra pessoa, pareceria idiota tentando explicar. Pense nisso quando ouvir o que tenho a dizerem seguida: simplesmente intentando, os feiticeiros intentam alguma coisa que os coloca no intento.

— Isso não significa nada, Dom Juan.

— Preste muita atenção. Algum dia vai ser sua vez de expli­car. A afirmação parece sem sentido porque você não a está colocando no contexto adequado. Como qualquer pessoa racional, você pensa que compreender está unicamente no âmbito da razão, de sua mente.

"Para os feiticeiros, como a afirmação que fiz tem a ver com o intento e com intentar, compreendê-la está no âmbito da energia. Os feiticeiros acreditam que, se intentarmos essa afirmação para o corpo energético, o corpo energético irá entendê-la em termos inteiramente diferentes dos termos da mente. O truque é buscar o corpo energético. Para isso você precisa de energia.

— Em que termos o corpo energético entenderia essa afirma­ção, Dom Juan?

— Em termos de um sentimento corporal, o que é difícil de descrever. Você precisa experimentar, para saber o que estou dizendo.

(...)


— Onde nós estávamos, Dom Juan? perguntei. — Foi um sonho? Um estado hipnótico?

— Não foi um sonho — ele respondeu. — Foi o sonhar. Ajudei-o a alcançar a segunda atenção, para que você compreen­desse o intento, não como um tema para o seu raciocínio, mas para seu corpo energético.
"Nesse ponto você ainda não pode compreender a importân­cia disso tudo, não só porque não tem energia suficiente, mas também porque não está intentando nada. Se estivesse, seu corpo energético compreenderia de imediato que o único modo de intentar é concentrando seu intento naquilo que você deseja inten­tar. Dessa vez concentrei-o, para você, em alcançar seu corpo energético.

— O objetivo de sonhar é intentar o corpo energético? — perguntei, subitamente com o poder de um raciocínio estranho.

— Pode-se colocar desse modo — ele disse. — Neste caso em especial, já que estamos falando sobre o primeiro portão do sonhar, o objetivo de sonhar é intentar que o seu corpo energético torne-se consciente de que você está caindo no sono. Deixe seu corpo energético fazê-lo. Intentar é desejar sem desejar, fazer sem fazer.

Aceite o desafio de intentar — prosseguiu ele. — Empenhe sua determinação silenciosa, sem qualquer pensamento, em con­vencer-se de que alcançou o corpo energético e de que é um sonhador. Isso irá automaticamente colocá-lo na posição de estar consciente de que está caindo no sono.

— Como posso me convencer de que sou um sonhador, quando não sou?

— Quando você ouve que precisa se convencer, imediata­mente se torna mais racional. Como pode se convencer de que é um sonhador quando sabe que não é? Intentar é as duas coisas: o ato de convencer a si próprio de que é de fato um sonhador, apesar de nunca ter sonhado antes, e o ato de ficar convencido.

— Então eu tenho de dizer a mim mesmo que sou um sonhador e tentar o máximo possível acreditar nisso?

— Não. Intentar é muito mais simples e, ao mesmo tempo, infinitamente mais complexo do que isso. Exige imaginação, disciplina e objetivo. Neste caso, intentar significa que você obtém um conhecimento inquestionavelmente corporal de que é um sonhador. Você sente que é um sonhador com todas as células do corpo.

Dom Juan acrescentou num tom jocoso que ele não tinha energia suficiente para me fazer outro empréstimo para o intento, e que a coisa a fazer era buscar sozinho meu corpo energético. Assegurou-me que intentar o primeiro portão do sonhar era um dos meios descobertos pelos feiticeiros da Antigüidade para chegar à segunda atenção e ao corpo energético.

Depois de dizer isso ele praticamente me expulsou de sua casa, ordenando que eu não voltasse até ter intentado o primeiro portão do sonhar.

Voltei para casa. E todas as noites, durante meses, fui dormir intentando com toda a força me conscientizar de que estava caindo no sono e ver minhas mãos nos sonhos. A outra parte da tarefa, convencer-me de que era um sonhador e que havia alcançado o corpo energético, era totalmente impossível.

Então, numa tarde enquanto cochilava, sonhei que estava olhando para minhas mãos. O choque bastou para me acordar. Aquele se mostrou um sonho especial que não pôde ser repetido. Passaram-se semanas e fui incapaz de me conscientizar de que estava caindo no sono ou de encontrar minhas mãos. Comecei a perceber, entretanto, que estava tendo em meus sonhos um vago sentimento de algo que eu deveria ter feito, mas que não conseguia recordar o que fosse. Esse sentimento ficou tão forte a ponto de me acordar constantemente durante a noite.

Quando contei a Dom Juan sobre minhas tentativas fúteis de atravessar o primeiro portão do sonhar, ele me deu algumas diretrizes.

— Pedir que um sonhador encontre um determinado item em seus sonhos é um subterfúgio — disse ele. — A verdadeira questão é conscientizar-se de que está caindo no sono. E, por mais estranho que possa parecer, isso não acontece ordenando-se a ficar cons­ciente de estar caindo no sono, e sim mantendo a visão da coisa que se está procurando no sono.

Disse-me que os sonhadores olham rápida e deliberadamente tudo que está no sonho. Se concentram sua atenção em algo específico, é apenas como um ponto de partida. A partir dali, os sonhadores passam a olhar outros itens do conteúdo do sonho, voltando ao ponto de partida quantas vezes for possível.

Depois de grande esforço realmente encontrei mãos em meu sonho, mas nunca eram minhas. Eram mãos que apenas pareciam me pertencer; mãos que mudavam de forma, tornando-se às vezes quase um pesadelo. Mas o resto do conteúdo dos sonhos estava sempre agradavelmente fixo. Eu quase podia sustentar a visão de qualquer coisa em que focalizasse minha atenção.

A coisa prosseguiu assim durante quatro meses, até um dia em que minha capacidade de sonhar mudou aparentemente por si própria. Eu não tinha feito nada de especial, apesar da determina­ção constante de me conscientizar de que estava caindo no sono e de encontrar minhas mãos.
Sonhei que estava visitando a cidade onde nasci. Não que a cidade com a qual sonhava se parecesse com aquela onde nasci, mas de algum modo eu tinha a convicção de que era. Tudo começou como um sonho comum, porém bastante vívido. Então a luz do sonho mudou. As imagens tornaram-se mais nítidas. A rua onde eu andava tornou-se notavelmente mais real do que um momento antes. Meus pés começaram a doer. Pude sentir que as coisas eram absurdamente duras. Por exemplo, ao bater contra uma porta, não somente experimentei a dor no joelho que bateu como também fiquei furioso por minha falta de jeito.

Caminhei realisticamente por aquela cidade até ficar exausto. Vi tudo que poderia ver se fosse um turista andando pelas ruas de uma cidade. E não havia qualquer diferença entre aquela cami­nhada onírica e as caminhadas que eu dava numa cidade que visitava pela primeira vez.

— Acho que você foi um pouquinho longe demais — Dom Juan disse depois de ouvir meu relato. — Só era necessária a sua consciência de estar caindo no sono. O que você fez é equivalente a derrubar uma parede só para esmagar um mosquito pousado nela.

— Quer dizer, Dom Juan, que eu fiz besteira?

— Não. Mas aparentemente você está tentando repetir algo que fez antes. Quando fiz seu ponto de aglutinação mudar, e nós terminamos naquela cidade misteriosa, você não estava dormindo. Estava sonhando, mas não dormindo. Isso quer dizer que seu ponto de aglutinação não alcançou aquele posicionamento através de um sonho normal. Eu forcei-o a se deslocar.

Você certamente pode alcançar a mesma posição através de um sonho, mas eu não aconselharia isso, por enquanto.

— É perigoso?

— E como! Sonhar tem que ser uma coisa muito sóbria. Não é possível se dar ao luxo de qualquer movimento em falso. Sonhar é um processo de despertar, de obter controle. Nossa atenção sonhadora deve ser sistematicamente exercitada, porque ela é a porta para a segunda atenção.

— Qual é a diferença entre a atenção sonhadora e a segunda atenção?

— A segunda atenção é como um oceano, e a atenção sonha­dora é como um rio que deságua nela. A segunda atenção é estar consciente de mundos inteiros, tão totais quanto o nosso, ao passo que a atenção sonhadora é estar consciente dos itens de nossos sonhos.

Ele enfatizou que a atenção sonhadora é a chave para cada movimento no mundo dos feiticeiros. Disse que entre a imensidão de itens de nossos sonhos existem interferências energéticas reais; coisas que foram postas em nossos sonhos por uma força estranha. Poder encontrá-las e segui-las é feitiçaria.

A ênfase que ele pôs naquelas afirmações foi tamanha que tive de pedir-lhe para explicar. Ele hesitou por um instante antes de responder.

— Os sonhos são, se não uma porta, um alçapão para outros mundos. Assim, os sonhos são vias de duas mãos. Por esse alçapão nossa consciência atravessa para outros reinos; e esses outros reinos mandam batedores para nossos sonhos.

— O que são esses batedores?

— Cargas de energia que se misturam aos itens de nossos sonhos normais. São fluxos de energia estranha que entram em nossos sonhos, e que nós interpretamos como itens familiares ou desconhecidos.

— Desculpe, Dom Juan, mas não consigo achar pé nem cabeça na sua explicação.

— Não consegue porque insiste em pensar nos sonhos em termos que você conhece: como aquilo que acontece conosco durante o sono. E estou insistindo em dar outra versão: o sonho é uma abertura para outras esferas de percepção. Através desse alçapão entram correntes de energias estranhas. A mente — ou o cérebro — capta essas correntes de energias e transforma em partes dos nossos sonhos.

Parou, obviamente para dar à minha mente tempo de absorver o que dizia.

— Os feiticeiros têm consciência dessas correntes de energia estranha — continuou. — Eles percebem-nas e tentam isolá-las dos itens normais de seus sonhos.

— Por que eles as isolam, Dom Juan?

— Porque elas vêm de outras esferas. Se as seguirmos até suas fontes, elas servirão como guias para áreas de um mistério tão grande que os feiticeiros estremecem à simples menção dessa possibilidade.

— Como os feiticeiros as isolam dos itens normais dos seus sonhos?

— Através do exercício e do controle de sua atenção sonha­dora. Num momento, nossa atenção sonhadora as descobre entre os itens de um sonho, concentra-se nelas e então todo o sonho se desmorona, deixando apenas a energia estranha.

Dom Juan se recusou a levar o tema adiante. Voltou a discutir minha experiência e disse que, no todo, tinha de ver meu sonho como minha primeira tentativa genuína, e que isso significava que eu conseguira alcançar o primeiro portão do sonhar.

Em outra discussão, numa outra época, ele trouxe abrupta­mente o assunto de volta. Disse:

— Vou repetir o que você deve fazer em seu sonho para atravessar o primeiro portão do sonhar. Primeiro deve focalizar sua vista em qualquer coisa que você escolha como ponto de partida. Em seguida vire-se para outros itens e dê olhadas breves. Focalize seu olhar no máximo de coisas que puder. Lembre-sede que, se você olhar rapidamente, as imagens não mudam. Em seguida volte para o item original, o primeiro para o qual você olhou.

— O que significa passar o primeiro portão do sonhar?

— Alcançamos o primeiro portão do sonhar ficando cons­cientes de que estamos caindo no sono ou tendo, como você teve, um sonho gigantescamente real. Depois de termos alcançado o portão, devemos atravessá-lo podendo manter a visão de qualquer item do sonho.

— Eu quase posso olhar fixo para os itens de meus sonhos, mas eles se dissipam muito rápido.

— É precisamente isso que estou tentando dizer. Para com­pensar a qualidade evanescente dos sonhos, os feiticeiros inven­taram o uso do item ponto de partida. Toda vez que você o isola e olha para ele, recebe um jorro de energia, de modo que no princípio não olhe muitas coisas em seus sonhos. Quatro itens já bastam. Mais tarde você pode alargar o alcance até poder abarcar tudo que quiser, mas assim que as imagens começarem a mudar e você sentir que está perdendo o controle, volte para o item ponto de partida e comece tudo de novo.

— Você acredita que eu realmente cheguei ao primeiro por­tão do sonhar Dom Juan?

— Chegou, e isso já é muito. Você vai descobrir, enquanto prossegue, como vai ser fácil sonhar agora.

Achei que Dom Juan estava exagerando ou me dando incen­tivo. Mas ele me assegurou que não.

— A coisa mais espantosa que acontece com os sonhadores disse ele — é que, ao chegar ao primeiro portão, também chegam ao corpo energético.

— O que, exatamente, e o corpo energético?

— É a contrapartida do corpo físico. Uma configuração fantasmagórica feita de pura energia.

— Mas o corpo físico não é feito também de energia?

— Claro que é. A diferença é que o corpo energético tem apenas aparência, não tem massa. Como é energia pura, ele pode realizar atos além das possibilidades do corpo físico.

— Como o que, por exemplo?

— Como se transportar num instante até os confins do uni­verso. E sonhar é a arte de afinar o corpo energético, de torná-lo flexível e coerente através do exercício gradual.

Através do sonhar condensamos o corpo energético até que ele se torne uma unidade capaz de perceber. Sua percepção, apesar de afetada por nosso modo normal de perceber o mundo cotidiano, é independente. Tem sua própria esfera.

— O que é essa esfera, Dom Juan?

— Essa esfera é a energia. O corpo energético lida com energia em termos de energia. Existem três modos através dos quais ele lida com a energia nos sonhos. Ele pode perceber a energia enquanto ela flui, pode usar a energia para lançar-se como um foguete até áreas inesperadas, ou pode perceber como perce­bemos comumente o mundo.
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Fonte: A Arte do Sonhar, Carlos Castaneda
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