segunda-feira, 31 de março de 2014

A importância dos Sonhos Lúcidos - Parte 3

Parte 3 - Sonhos e carma
 
Nos sonhos, o carma se revela de maneira mais livre e evidente, pois ainda mais nitidamente que na consciência vígil, a mente plástica dá origem a uma realidade co-emergente completa, dotada de todos os atributos de concretude. Nos sonhos, deparamo-nos com nossos desejos e temores íntimos, vividos por meio da linguagem simbólica e mítica que rompe todas as instâncias críticas e auto-supressoras. Estamos diante da estrutura cármica operando de maneira crua e imediata.
Por outro lado, os sonhos também influenciam a vigília, permanecem vivos e operantes após acordarmos.
Se estamos em uma rua e vemos um ônibus vermelho passando, isso pode promover uma súbita mudança de humor, quase imperceptível (que pode vir à consciência através de um mero flash emocional ou pensamento fugidio). Se estivermos atentos ao  mundo dos sonhos, podemos perceber que essa alteração se deveu a um sonho tido naquela noite, em que o ônibus vermelho esteve associado a uma situação onírica de perigo e medo.
Mas é possível que sequer lembremos de ter sonhado na noite anterior.
Nesse caso, o medo súbito que nos acometeu de modo sutil poderá, ao invés, ser associado ao compromisso que tínhamos naquele instante – ou a outro pensamento, ou recordação daquele momento, por exemplo, um encontro com o namorado ou ao dentista. Essa nova associação medo=>namorado ou dentista dará, por sua vez, origem a uma nova corrente cármica, tanto faz se pela simples associação (por exemplo, o consultório do dentista é “lido” como um ambiente negativo; maus presságios, pensamentos negativos sobre o dentista etc) ou se a associação culmina efetivamente em uma nova ação, por exemplo, briga com o namorado: sonho => medo => dentista => pensamentos e emoções negativas => ação.
O sonho nada teve a ver com  o dentista, porém a mente influenciada pelo sonho promoveu uma nova re-significação da realidade circundante; isso, por sua vez, dará origem a novas associações. Por exemplo, toda vez que ir ao dentista sentirei um pouco de medo ou me ocorrerão novos pensamentos negativos; ou me lembrarei (por um flash quase inconsciente) da briga que tive com meu namorado sempre que passar naquela rua, o que produzirá no futuro novas sensações e pensamentos negativos relacionados à rua; e isso poderá produzir uma discussão com o dono da banca de jornal que fica naquela esquina... e, por conta disso, passarei a ter uma visão cética acerca da revista que costumava comprar ali etc; isso talvez dê causa a outros sonhos – por exemplo, sonho que o dono da banca está saindo com minha namorada ou que está tentando matar meu dentista etc -  e a corrente ganhará nova vida, dando origem a outros efeitos.
Isso ocorre incessantemente durante todos os nossos dias.
Os sonhos não mentem: eles revelam com toda a crueza nosso modo de estar e de nos sentir no mundo e, portanto, perante nós mesmos. Eles nos trazem a nossa temática íntima, nossas interrogações mais viscerais, nossos paradigmas. Se costumo sonhar que estou em um labirinto ou em uma viagem; conduzindo um veículo ou se costumo sonhar estar sendo perseguido; se tenho sonhos recorrentes e pesadelos que se repetem, a própria estrutura de tais sonhos me revela a estrutura de meu modo de ser e me sentir diante da vida. Em outra linguagem, podemos captar a energia e a sensação básica que trazem os sonhos. É como se a atmosfera do sonho – tomado como um todo - nos revelasse a nossa própria personalidade, a sua indagação e sua problemática.
Nos SL, temos a oportunidade de identificar e integrar tais energias operando vivamente em nosso “eu”, liberando pulsões internas recôndidas.
 
A atuação dos SL sobre nossa personalidade pode ser traduzida de duas maneiras:
1)     através da identificação e superação de nossos bloqueios emocionais e mentais, nosso complexo de crenças, nossa auto-limitação, enfim, tudo aquilo que negativamente compõe a nossa auto-imagem;
2)     através de um programa positivo, ou seja, podemos nos transformar em tudo aquilo que quisermos ser e operar em um outro patamar de motivações e valores:
 
Em estado transpessoal você pode ser qualquer tipo de experiência, entre ficar com o ego - a identidade- até o princípio criador. Podemos nos experienciar como seres mitológicos ou em níveis mitológicos de consciência - onde o ser humano é definido como um campo de possibilidades sem limites." (Grof, 2000).
 
Por tudo isso a lucidez onírica é importante, pois ao atingirmos o estado lúcido durante o sonho, poderemos enfrentar e superar os problemas íntimos mais profundos ainda enquanto estivermos dentro do contexto inconsciente e enquanto o enredo cármico se desenrola, vindo mesmo a nos deparar com os condicionamentos que formam nossa personalidade.
      O que se busca em um SL, portanto, não é o mero gozo ou a simples interrupção da experiência onírica, seja ela prazerosa ou não, mas um legítimo resgate da liberdade. É a oportunidade para integrarmos o eu e reconciliar os polos cindidos da consciência ordinária dual. 

quinta-feira, 27 de março de 2014

A importância dos Sonhos Lúcidos - Parte 2

 Parte 2 - A estrutura cármica numa condição ordinária (condição 100% responsiva da mente)
Normalmente, encontramo-nos em um estado de consciência em que a forma de interação com o mundo traz implícita a separação sujeito x objeto. Consideramo-nos separados do mundo e, diante dessa separação, buscamos maximizar a satisfação de nossos interesses individuais orientados pelo apego. Em algumas tradições, esse estado é denominado de estado dual ou simplesmente dualidade.
A lógica que rege o estado de consicência dual é marcada e orientada por cisões, tais como: prazer/desprazer; defesa/ataque; ação/reação; eu/outro; sagrado/profano; consciente/inconsciente, bom/mau; bem/mal; moral/imoral, prestígio/humilhação etc.
 Num nível psicológico ordinário, isso se concretiza em afirmações ou percepções acerca do mundo tais como: não sou livre; os outros me prejudicam; eu sou vítima; não tenho culpa; isso é injusto etc. É o conflito entre a auto-imagem de um ego separado e a realidade do mundo que se impõe.
Nesse conflito, surge o impulso, consciente ou não, mediatizado ou imediatizado, de reação aos estímulos oferecidos pelo mundo, sejam eles prazerosos ou não, impulso esse geralmente orientado pelo apego em sustentar valores ou situações assimiladas na família, escola, mídia, igreja e outras instâncias de socialização que ajudaram a formar nossa auto-imagem e a lapidar nossa personalidade, muitas vezes sem considerar  se disso resultará maior prejuízo, dor  e sofrimento.
Por exemplo, diante de um insulto ou de uma agressão (estímulos externos) ou diante de pensamentos ou memórias desagradáveis (estímulos internos), muitas vezes apenas interpretados como desfavoráveis, sou imediatamente tomado pelas emoções de raiva, medo, angústia, tristeza e toda a sorte de sentimentos negativos; de outro lado, diante de um estímulo prazeroso externo (um elogio, um presente, uma promoção no trabalho ou qualquer situação gratificante), ou de um pensamento ou recordação agradáveis (estímulos internos) sou imediatamente tomado por sentimentos e sensações positivos. Após submeter tais processos a um confronto com minha escala de valores pessoal ou coletiva (comparação com a auto-imagem adquirida), determino o grau de relevância para os mesmos, resultando nas ações correspondentes a essa relevância, realizadas muitas vezes ao calor dessas sensações ou impulsos.
Essa condição de reatividade, geralmente incontrolável e muitas vezes considerada inevitável, é por algumas tradições denominada condição responsiva da mente.
Quanto maior e menos controlável for o impulso de reação – seja no nível de pensamentos, emoções, fala ou de ação – maior será o caráter responsivo da mente. Uma condição muito responsiva, desse modo, é aquela em que somos completamente tomados e guiados em função dos estímulos. Essa é a condição de apego em que se encontra a maioria esmagadora dos seres e para os quais são dirigidos os ditames culturais e ideológicos. Se considerarmos o aspecto co-emergente da realidade, por outro lado, temos que a própria construção da realidade, sua manifestação, é também determinada pelo nível de apego e da estrutura cármica.
No contexto presente, quando nos referimos ao carma – geralmente definido como o encadeamento causal interminável: para cada ação, uma reação correspondente é esperada – estamos enfocando especialmente esse processo que nos subjuga por meio do caráter responsivo da mente. Trata-se de uma condição não-livre, pois aquele que é incessantemente dominado pela busca do prazer e guiado pela responsividade é meramente um escravo das condições externas e de seus próprios humores.
      Em um nível mais grosseiro, diz-se que é melhor não agir negativamente do que realizar uma ação negativa, ainda que isso colida com nosso impulso original e imediato: neste caso, estamos diante de mero controle sobre as ações, num movimento de repressão interna ou opressão externa. Não raras vezes esse controle poderá exercer novas pressões cármicas, originando nova cadeia de causalidades do mesmo tipo.
Porém, em um nível mais sofisticado e sutil, podemos acessar certas instâncias de nossa mente nas quais os impulsos têm a sua origem. Não por acaso, os sonhos são considerados, em todas as tradições, uma instância privilegiada de acesso ao inconsciente. Ao estabelecermos a lucidez nesse nível de maior profundidade, a própria motivação é superada ou integrada (desapego), alterando-se a paisagem mental – incluindo a própria realidade circundante, em razão da co-emergência. O processo culmina com a eliminação ou atenuação do caráter meramente responsivo da mente, em sua origem primeira, que é o pensamento primordial que se traduz na ilusão de um ego separado do mundo.

quinta-feira, 20 de março de 2014

A importância dos Sonhos Lúcidos (SL) - Parte 1


Parte 1 - A abordagem tibetana
 
Por razões que ficarão mais claras adiante, interessa-nos em especial a abordagem tibetana acerca dos sonhos – pois foi nessa cultura que floresceu da maneira talvez mais rica, detalhada e profunda o estudo dos sonhos e, em particular dos SL, associado a um rigor na análise que supera a abordagem cientifica atual.
Com efeito, tanto na tradição pré-budista (Bön), quanto nas quatro linhagens do Budismo Tibetano, a prática de SL constitui uma das principais práticas yóguicas a serem conduzidas com vistas ao aumento da lucidez e expansão da consciência até o atingimento do estado búdico (auto-realização): é a chamada prática noturna. E, de fato, o desenvolvimento da capacidade de sonhar lucidamente marca o início da assim chamada yoga dos sonhos, pela qual o praticante poderá superar não apenas dificuldades psicológicas e emocionais comuns (obstáculos primários ao desenvolvimento espiritual), como também é através dela que principia sua prática genuinamente espiritual. Atingido um certo grau de maestria na yoga dos sonhos, o praticante se dedicará, nas práticas noturnas, à yoga do sono, em que o estado do consciência plena se estabelece sem sonhos.
A vantagem da prática noturna é que, durante o sono (diriam os ocidentais, em estados de frequência mental alterada), desativamos muitas das barreiras críticas que nos impedem de acessar instâncias inconscientes:  a mente se torna mais plástica.
Por exemplo, podemos observar, já no estado hipnagógico (o estado entre vigília e sono), que as idéias se associam mais rápida e livremente sem as barreiras da vigília racional-crítica. Todos nós já observamos que, mesmo quando nos julgamos plenamente acordados durante uma madrugada insone, algumas idéias nefastas, obscuras ou trágicas, de um lado, ou insights brilhantes e  “evidentes”, por outro, nos ocorrem com incrível singeleza e velocidade.
Disso advém uma outra idéia fundamental, também derivada da plasticidade, qual seja: a percepção de que aquilo que pensamos automaticamente se materializa diante do foco de atenção, tanto sob forma de imagens, percepções sensoriais e sensações diversas, como de sentimentos, emoções, memórias  e mesmo de outros pensamentos, num encadeamento livre que dá vida a um mundo paralelo, plenamente concreto (co-emergência da realidade).
 
Adormeci. Estava conseguindo ver claramente todos os objetos que costumam adornar o meu estúdio. Minha atenção pousou numa bandeja de porcelana em que mantenho os lápis e canetas e que tem uma deco­ração muito fora do comum (...) De repente pensei: sempre que estou acordado e olho para esta bandeja, está inteira. E se eu a quebrasse no sonho? Como a minha imaginação iria representar a bandeja quebrada? Imediatamente quebrei-a em vários pedaços. Peguei os pedaços e examinei-os atentamente. Observei as arestas afiadas das linhas de ruptura e as trincas dentadas que separaram as figuras da decoração em vários lugares. Nunca havia tido um sonho tão vívido.
 
No tocante aos SL e às práticas noturnas, o princípio consiste em perceber que a mente – seja no sono ou na vigília – é plástica e a realidade, co-emergente. Trata-se de transferir os estados e o aprendizado obtidos durante o sono - com a utilização da plasticidade da mente -  para o estado de vigília, formando o continuum do estado de consciência.  Esse continuum de consciência pode ser descrito de outras formas: aproximação e integração dos dois hemisférios cerebrais; fusão/aproximação do consciente e do inconsciente; feminino e masculino; superação da dualidade sujeito-objeto; superação das limitações espaço-temporais etc. Não nos aprofundaremos aqui sobre isso.
Pelo exposto, fica mais claro que esta abordagem não se refere à interpretação dos sonhos, mas antes à forma como a consciência se estrutura e opera (tanto em sono, como na vigília), com vistas à sua expansão, utilizando para isso a sempre privilegiada instància dos sonhos.