Normalmente, encontramo-nos em um estado de consciência em que a forma de interação com o mundo traz implícita a separação sujeito x objeto. Consideramo-nos separados do mundo e, diante dessa separação, buscamos maximizar a satisfação de nossos interesses individuais orientados pelo apego. Em algumas tradições, esse estado é denominado de estado dual ou simplesmente dualidade.
A lógica que rege o estado de consicência dual é marcada e orientada por cisões, tais como: prazer/desprazer; defesa/ataque; ação/reação; eu/outro; sagrado/profano; consciente/inconsciente, bom/mau; bem/mal; moral/imoral, prestígio/humilhação etc.
Num nível psicológico ordinário, isso se concretiza em afirmações ou percepções acerca do mundo tais como: não sou livre; os outros me prejudicam; eu sou vítima; não tenho culpa; isso é injusto etc. É o conflito entre a auto-imagem de um ego separado e a realidade do mundo que se impõe.
Nesse conflito, surge o impulso, consciente ou não, mediatizado ou imediatizado, de reação aos estímulos oferecidos pelo mundo, sejam eles prazerosos ou não, impulso esse geralmente orientado pelo apego em sustentar valores ou situações assimiladas na família, escola, mídia, igreja e outras instâncias de socialização que ajudaram a formar nossa auto-imagem e a lapidar nossa personalidade, muitas vezes sem considerar se disso resultará maior prejuízo, dor e sofrimento.
Por exemplo, diante de um insulto ou de uma agressão (estímulos externos) ou diante de pensamentos ou memórias desagradáveis (estímulos internos), muitas vezes apenas interpretados como desfavoráveis, sou imediatamente tomado pelas emoções de raiva, medo, angústia, tristeza e toda a sorte de sentimentos negativos; de outro lado, diante de um estímulo prazeroso externo (um elogio, um presente, uma promoção no trabalho ou qualquer situação gratificante), ou de um pensamento ou recordação agradáveis (estímulos internos) sou imediatamente tomado por sentimentos e sensações positivos. Após submeter tais processos a um confronto com minha escala de valores pessoal ou coletiva (comparação com a auto-imagem adquirida), determino o grau de relevância para os mesmos, resultando nas ações correspondentes a essa relevância, realizadas muitas vezes ao calor dessas sensações ou impulsos.
Essa condição de reatividade, geralmente incontrolável e muitas vezes considerada inevitável, é por algumas tradições denominada condição responsiva da mente.
Quanto maior e menos controlável for o impulso de reação – seja no nível de pensamentos, emoções, fala ou de ação – maior será o caráter responsivo da mente. Uma condição muito responsiva, desse modo, é aquela em que somos completamente tomados e guiados em função dos estímulos. Essa é a condição de apego em que se encontra a maioria esmagadora dos seres e para os quais são dirigidos os ditames culturais e ideológicos. Se considerarmos o aspecto co-emergente da realidade, por outro lado, temos que a própria construção da realidade, sua manifestação, é também determinada pelo nível de apego e da estrutura cármica.
No contexto presente, quando nos referimos ao carma – geralmente definido como o encadeamento causal interminável: para cada ação, uma reação correspondente é esperada – estamos enfocando especialmente esse processo que nos subjuga por meio do caráter responsivo da mente. Trata-se de uma condição não-livre, pois aquele que é incessantemente dominado pela busca do prazer e guiado pela responsividade é meramente um escravo das condições externas e de seus próprios humores.
Em um nível mais grosseiro, diz-se que é melhor não agir negativamente do que realizar uma ação negativa, ainda que isso colida com nosso impulso original e imediato: neste caso, estamos diante de mero controle sobre as ações, num movimento de repressão interna ou opressão externa. Não raras vezes esse controle poderá exercer novas pressões cármicas, originando nova cadeia de causalidades do mesmo tipo.
Porém, em um nível mais sofisticado e sutil, podemos acessar certas instâncias de nossa mente nas quais os impulsos têm a sua origem. Não por acaso, os sonhos são considerados, em todas as tradições, uma instância privilegiada de acesso ao inconsciente. Ao estabelecermos a lucidez nesse nível de maior profundidade, a própria motivação é superada ou integrada (desapego), alterando-se a paisagem mental – incluindo a própria realidade circundante, em razão da co-emergência. O processo culmina com a eliminação ou atenuação do caráter meramente responsivo da mente, em sua origem primeira, que é o pensamento primordial que se traduz na ilusão de um ego separado do mundo.
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