quarta-feira, 2 de abril de 2008

Uma Prática de Sonho Lúcido no Tibete

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Quando o discípulo vai dormir, deita-se na chamada "postura do leão" (7), isto é, estendido sobre o lado direito, a cabeça repousando sobre a palma da mão direita. Os ascetas hindus e os monges budistas dormem nessa posição e geralmente sem travesseiro.


A contemplação prescrita é a seguinte:

O noviço imagina que em seu coração existe um vaso octo­gonal de cristal, onde se encontra um lótus cujas pétalas têm as cinco cores místicas: branco, vermelho, azul, verde e ama­relo. No centro do lótus aparece a letra A. É imensa e traçada com luz brilhante.

Ele imagina outra letra de cor branca, que paira sobre sua cabeça. Dela emergem inúmeros pequenos A brancos que se precipitam como uma torrente em direção ao A luminoso, que se encontra dentro do vaso de cristal, passando através dele e retornando ao A colocado sobre a cabeça, formando uma cadeia infinita.

Outro A de cor vermelha é visualizado na região do períneo e dele emerge uma torrente de pequenos A da mesma cor, que sobe em direção ao A luminoso imaginado no coração e retoma para o A vermelho que a emitiu, cercando a parte inferior do corpo, como os A brancos cercam a parte superior.

Quando a atenção se reduz e o sono domina o discípulo, ele pára as duas procissões e absorve todos os A no A cen­tral. E este penetra no lótus, que fecha suas pétalas. Quando as últimas se fecham, um raio de luz jorra da flor. O discí­pulo deve pensar nesse momento: "Tudo está vazio."

Então ele perde a consciência daquilo que o cerca. A idéia do quarto, da casa onde se encontra, do mundo e do seu "eu" desaparece completamente.

Se acordar durante a noite, o naldjorpa deve ter o pensamento da "luz", a visão da "luz", com exclusão de todas as outras e sem ajuntar-lhe qualquer idéia de "forma."
O mais importante resultado desse exercício é preparar o espírito para a compreensão do Vazio.

Um resultado mais comum oferece três graus. No melhor deles deixa-se de sonhar. No resultado médio, quando se so­nha, se tem consciência de que os acontecimentos que se desenrolam e as ações que se praticam passam-se em sonhos. No grau inferior, não há senão sonhos agradáveis.

Observe-se de passagem que certas pessoas afirmam que o sonhador acorda quando desconfia que está sonhando, ou então que o estado de semi-consciência que lhe permite sa­ber que está sonhando assinala a aproximação do despertar. Isto ,não acontece com aqueles que estão treinados na prática da meditação introspectiva.

Os naldjorpas que ainda não alcançaram uma tranqüilidade de espírito suficiente para normalmente dormir sem sonhar, têm plena consciência durante os sonhos, de que estão dor­mindo e contemplam imagens desprovidas de realidade.

Conseguem, assim, sem despertar, fazer reflexões sobre aquilo que sonham. Ás vezes eles contemplam, com o mesmo interesse que temos ao assistir a uma representação teatral, a seqüência de aventuras que vivem durante o sono, e já es­cutei alguns deles dizerem que às vezes hesitam praticar, em sonhos, ações que não teriam praticado acordados e decidiam vencer seus escrúpulos porque sabiam que o ato não seria real.

Os tibetanos não detêm o monopólio desse gênero de ca­suística. Ouso narrar aqui a confidência singular que uma senhora me fez certo dia a respeito de um sonho que alguns séculos antes poderia tê-la levado à fogueira.

Ora, essa dama sonhou com o Diabo. E o mais surpreen­dente é que ele estava apaixonado por ela; abraçava-a en­quanto que uma tentação abominável se apossava da mulher adormecida. Era católica praticante, e a idéia de ceder à ten­tação a enchia de terror, mas uma crescente curiosidade sen­sual a excitava. O amor de Satã! Que volúpia, desconhecida a uma casta esposa, estaria aí escondida... Que experiência extraordinária! . . . No entanto, nessa luta, os sentimentos reli­giosos iam triunfar quando, subitamente, brilhou no espírito da senhora adormecida uma luz estranha. É um sonho, pensou ela. . . E se é apenas um sonho. . .

Não sei se minha gentil devota confessou seu "pecado" e o que lhe disse o mentor de sua consciência, mas, no que diz respeito aos lamas, eles não revelam nenhuma indulgência para com as faltas cometidas em tais circunstâncias. Para eles, a repercussão mental do ato, bom ou mau, realizado em sonhos é idêntico ao que produziria o mesmo ato praticado pela pessoa acordada. Voltarei a esta questão.

Nesse período de treinamento, o noviço pode dormir du­rante toda a noite, sem acordar para a meditação de meia­ noite, como fazem os ascetas mais velhos. Contudo, ele deve despertar ao alvorecer, ou de preferência, pouco antes de amanhecer.

Seu primeiro pensamento deve ser dirigido para o A que se encontra em seu coração.

Para isto existem dois métodos: o mais comum, usado pelos iniciantes, consiste em ver o A saindo do coração e sobrepai­rando no ar. O discípulo contempla-o como o símbolo do Vazio e esforça-se para atingir uma perfeita concentração mental sobre ele.

No segundo método, que é usado pelos estudantes mais avançados, o A projeta-se imediatamente no espaço e nele desaparece como que tragado pelo infinito. Em seguida, o discípulo fica absorvido no pensamento do Vazio.

Ao nascer do sol, continua-se a meditação com o exercício descrito no número I.

É verdade que um resumo tão rudimentar como este não faz justiça a essas práticas, pois não vai além da apresentação do seu aspecto pueril e bizarro.

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Os mais experimentados dentre eles nas práticas de exercícios psíquicos insistem na utilidade de manter o autocontrole, mesmo durante o sono. Neste ponto, não fazem mais que seguir Tsong Khapa, que consagra, a esse respeito, muitas páginas de sua grande obra, o Lamrin.

Isto será explicado a seguir:

É importante, diz Tsong Khapa, não se perder o tempo que se dedica ao sono, quer se tornando, uma vez que já se está dormindo, inerte como uma pedra, ou deixando o espírito cair na incoerência de sonhos absurdos e nefastos.

As manifestações desordenadas de atividade mental que se produzem no sonho, trazem para o que dorme, um desper­dício de energia que poderia ser usada para fins mais úteis. Ademais os atos realizados ou os pensamentos manifestados durante o sonho têm um valor idêntico ao dos atos e pensamentos do homem acordado. É conveniente, portanto, "não fabricar o mal" durante o sono.

Já declarei que os lamas professam essa teoria e encontra­mos aqui uma explicação dada por um dos mais ilustres den­tre eles. Decerto ela causará espanto aos ocidentais. Como, perguntarão a si mesmos, pode um ato imaginário ter os mes­mos resultados de um ato real? Devemos então prender quem roubar a carteira de alguém?
A comparação é ruim e não corresponde ao ponto de vista dos lamaístas. Na sua opinião, não se trata de "julgar" ou "prender" o ladrão. ,
A crença na retribuição do bem e do mal por um Poder consciente e pessoal não existe entre os tibetanos. Até nas concepções religiosas populares, o papel de Chindjé, o Juiz dos Mortos, consiste simplesmente em aplicar leis inflexíveis das quais ele não é o autor e às quais de maneira alguma pode revisar. Ademais Tsong Khapa e seus discípulos não se dirigem, aqui, à massa comum de suas ovelhas. Para eles, as conseqüências mais graves de um pensamento ou de um ato são as modificações de ordem psíquica que se produzem no próprio autor.

O ato material traz para quem o realiza conseqüências materiais visíveis mais ou menos agradáveis ou desagradáveis, mas o ato mental que o precedeu (isto é, a vontade de realizar o ato material) corrompe ou melhora seu autor de maneira invisível, cria nele afinidades e tendências ocultas que lhe são proveitosas ou nefastas, e essa mudança íntima no cará­ter do indivíduo pode, por sua vez, conduzir a resultados de ordem material.
Os tibetanos atribuem grande importância ao domínio do subconsciente (termo que, evidentemente, eles não usam). Crêem que as manifestações de nossa real natureza são entra­vadas pelo condicionamento a que estamos sempre sujeitos no estado de vigília, quando temos consciência de nossas personalidade social, de nosso meio-ambiente, dos ensinamentos, dos exemplos que nossa memória torna presente, e de mil outras coisas. O segredo dessa real natureza se encontra nos impulsos que não derivam de nenhuma consideração baseada nesses dados. O sono, abolindo-os em grande parte, liberta o espírito dos entraves que o aprisionavam no estado de vigília e dá expansão aos impulsos naturais.

Portanto, é realmente o indivíduo que age durante o sonho, e seus atos, embora imaginários do ponto de vista de quem está acordado, são muito reais no tocante à violação e com­portam todas as conseqüências correlatas.

Baseando-se nessas idéias, os mestres místicos recomendam uma atenta observação da conduta e dos sentimentos que se manifestam nos sonhos, a fim de se chegar ao autoconheci­mento. Todavia, têm o cuidado de aconselhar o discípulo a tentar discernir a parte que as influências externas podem ter nos estados de consciência da pessoa que dorme.


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Como em todos os países, existe, no Tibete, pessoas que crêem em sonhos premonitórios. No entanto,os lamas místicos não incentivam esse tipo de superstição. Dizem eles que o sonho da maioria das pessoas nasce do desregramento de sua imaginação durante o sono. As únicas indicações que podem apresentar, se o quiserem, são as que dizem respeito às dispo­sições ocultas de seu caráter, como já foi dito.

Um pequeno número de naldjorpas que adquiriu faculda­des psíquicas particulares têm, algumas vezes, sonhos premo­nitórios ou vêem, em sonhos, fatos que ocorrem a distância. Mas essas informações misteriosas são recebidas por eles, na maioria das vezes, durante transes de um tipo especial nos quais a pessoa nem se encontra adormecida, nem necessaria­mente concentrada na meditação. As vezes, o aviso reveste a forma de aparições subjetivas simbólicas.

Para tomar-se "um naldjorpa que não dorme" o candidato deve exercitar-se da seguinte maneira:

"Quando chegar a hora de dormir, ide para fora, lavai os pés e depois deitai na “postura do leão" sobre o lado direito, as pernas esticadas, com o pé, esquerdo repousando sobre O direito.

"Procurai, em seguida, ter a percepção da luz, procurando captar perfeitamente todas as características da claridade. Se o naldjorpa estiver impregnado dessa claridade na hora de dormir, seu espírito não será coberto pelas trevas enquanto repousar.

"Evocai em vossa memória a doutrina do Buda. Meditai sobre ela até o momento de ceder ao sono, tratando também de rejeitar todas as idéias depravadas que poderiam aparecer em vós. Agindo dessa forma, o tempo passado a dormir não será diferente do que teria sido se estivésseis acordados. Vosso espírito continuará, sem o saberdes, as operações mentais no sentido em que o dirigistes, e mesmo dormindo, praticareis a virtude."

Também é conveniente conservar ativa a "consciência do despertar". Estando o corpo vencido pelo sono, o espírito deve, contudo, permanecer lúcido e vigiar. "Vosso sono deve ser leve como o dos animais selvagens. Assim estareis capacitados para despertar no momento prefixado.

Alexandra David Néel – INICIAÇÕES TIBETANAS
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