quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

SONHO E MULTIDIMENSIONALIDADE



HYPNOS - Conto de Lovecratt

"A propósito do sono, sinistra aventura de nossas noites, podemos' dizer que os homens vão dormir revestidos de uma audácia que seria incompreensível se não soubéssemos que ela é o resultado da ignorância do perigo".
Baudelaire
(citação feita por Lovecraft)

Se existem deuses clementes, que eles me protejam durante essas horas em que nada no mundo pode me prote­ger dos abismos aterrorizantes do sono! A morte é suave, pois que sem retor­no, mas aquele que emerge das câmaras profundas da noite, atemorizado pelo que sabe, não encontrará jamais o descanso. Fiquei transtornado quando mergulhei nos mistérios que o homem não foi feito para alcançar. Quanta excitação sem freios! Quantos apetites sem controle! No que diz respeito a meu amigo, aquele que me con­duziu, que foi mais longe do que eu, e que foi levado embora por forças das quais até hoje eu temo o apelo, quanto a meu único amigo - era um louco, era um deus?

Lembro-me de que nós nos conhecemos em uma estação. Um grupo de passantes curio­sos estava à sua volta. Achava-se caído ao chão, inconsciente. Uma convulsão tornara estranhamente rígido aquele corpo magro vestido de negro. Devia ter 40 anos. Seu rosto, descarnado era sulcado por muitas rugas, porém possuía um oval puro e uma conformação nobre. Sua cabeleira espessa e sua barba curta apresentavam-se grisalhas. Sua fronte era alta e alva como o mármore de Pentelicus. Sou escultor, e para mim aquele homem desmaiado era um fauno da Hélade saído das ruínas de um templo, res­suscitado e atirado em nosso mundo opressivo para sofrer entre nós o frio e o peso do tempo. Quando ele abriu seus olhos imensos, e negros senti que havia finalmente encontrado um amigo. Pois tais olhos haviam, sem dúvida alguma, contemplado coisas repletas de grandeza e de espanto, coisas do Além, as mesmas que eu desejava em sonho e procurava em vão. Afastei os curiosos, disse àquele homem, sem preâmbulos ou hesitações, que ele era meu mestre, meu guia, meu irmão, e ele concordou entrecer­rando os olhos. Fomos embora os dois, mudos. Um pouco mais tarde ele começou a falar, e a música de sua voz evocava violas muito antigas esferas de cristal. Con­versávamos noite e dia, enquanto que eu esculpia seu busto ou gravava seu rosto no marfim.
Não me é quase possível precisar a natureza de nossas pesquisas. Somente posso dizer que se tratava de apreender o fio de um outro universo situado além da matéria, do tempo e do espaço. Era somente no sono que suspeitávamos a existência desse fio, ou antes, em alguns sonhos excepcionais, sonhos de sonhos, ultra-sonhos que permanecem ignorados da maior parte dos homens e sur­gem somente uma ou duas vezes ao longo de uma vida consagrada ao espírito.

Os sábios interpretaram os sonhos, e os deuses zombaram. Um homem com olhos de oriental disse que todo tempo e todo es­paço são relativos, e os homens não com­preenderam. Mas esse mesmo sábio perce­beu apenas de relance coisas estranhas e formidáveis. Meu amigo e eu tentamos ir mais adiante. Com a ajuda de drogas exóti­cas partimos à procura de visões terríveis e proibidas. Tudo isso se passava em nosso estúdio, na torre de uma mansão do condado de Kent.

A impossibilidade de me exprimir é a pior das agonias que eu agora atravesso. Nenhu­ma língua possui os símbolos necessários para relatar o que eu senti e aprendi durante aquelas horas de ímpia exploração. Do começo até o fim nossas descobertas foram da ordem das sensações, mas sensações fora da escala da humanidade normal. No fundo de tudo isso havia elementos incríveis de tempo e de espaço: coisas sem existência separada ou definida. Como me exprimir? Mergulho lento, queda prolongada de um vôo planado? Uma certa parte de nosso es­pírito rompia com tudo que é real e presen­te, seguia para abismos tenebrosos, boiava em uma substância desconcertante, deci­frando algumas vezes certos obstáculos: es­pécies de nuvens amorfas, vapores visco­sos. . .
Nesses vôos negros e incorpóreos algumas vezes nos separávamos, outras vezes nos juntávamos. Porém mesmo estando juntos, meu amigo sempre estava muito adiante de mim. Adivinhava sua presença, apesar da ausência da forma, por uma espécie de memória figurada através da qual seu rosto aparecia envolto em uma luz dourada, in­crivelmente jovem, com a fronte olímpica e os olhos fulgurantes. Nós não tomávamos notas e não datávamos nossas experiências pois o tempo tornara-se para nós simples ilusão. Provavelmente fenômenos estranhos aconteceram, pois eu me lembro que che­gamos a nos perguntar por que não envelhe­cíamos mais. Nossas conversações eram cheias de ambições que se assemelhavam a blasfêmias. Um dia meu amigo escreveu um desejo que ele não ousava proferir. Após queimar o papel, olhei através da janela, com temor, o céu noturno repleto de estre­Ias. . . Ele queria dominar o universo visí­vel e muito além. Um dia a terra e as es­trelas se deslocariam sob o seu comando, um dia ele controlaria o destino de todas as coisas vivas... Afirmo e juro: jamais compartilhei essas aspirações extremas, e se meu amigo disse ou escreveu o contrário ele se enganou.

Chegou um dia em que forças, seres vindos de espaços desconhecidos fizeram-no rodo­piar em um vazio sem limites, além do pen­samento, além de todas as entidades. Desta vez passamos rapidamente através de obs­táculos viscosos, e logo senti que éramos conduzidos para domínios infinitamente longínquos. Meu amigo estava muito adian­te de mim nesse estranho mergulho no indi­zível, no obscuro e no virgem. Eu percebia uma exaltação sinistra na imagem-lembrança de seu semblante tão jovem e luminoso. De repente esta imagem apagou-se, eu perdi o contato e fui projetado contra um obs­táculo intransponível: nuvem amorfa como as demais, porém mais densa, espécie de massa adesiva, se assim posso me exprimir, naquele domínio estranho à matéria. A luta me despertou e abri os olhos que se pou­saram nas paredes de nosso estúdio. Em um canto estava estendido meu amigo sonhador, altivo e belo sob a luz verde e dou­rada que vinha da lua. Ele moveu-se. Quei­ram os céus poupar-me de ouvir uma se­gunda vez o que então eu ouvi! Ele gritou, gritou, e seus olhos negros, que o medo , enlouquecia, banhavam-se no inferno. Des­maiei e foi ele quem mais tarde me ajudou a recobrar a consciência quando teve ne­cessidade de alguém que o ajudasse a afastar de sua alma o horror e a desolação. Foi o fim de nossas pesquisas voluntárias nas cavernas do sonho. Exausto, tremendo e grave, meu amigo, que atravessara a barreira, dis­se-me que não deveríamos nunca mais tentar penetrar no Além. Ele não ousava descrever o que tinha visto. Dali em diante, disse-me ainda, deveríamos dormir o menos possível, permanecer acordados, custasse o que custasse. Ele sem dúvida tinha razão, pois, com efeito, uma espécie de pânico apodera­va-se de mim desde que o sono chegava, a partir do momento em que minha cons­ciência se afrouxava. Mas como seria pos­sível deixar de dormir? Após cada sono breve e inevitável, eu me sentia envelhe­cido e meu amigo muito mais. Em seu rosto que eu tanto admirara, as rugas se multiplicavam a cada minuto que passava. Era terrível, horrendo. Muda­mos de vida. Até o momento meu amigo, que não me contara jamais nem seu no­me nem suas origens, tinha vivido como um recluso. E de repente não podia mais ficar sozinho, ainda que fosse na minha simples companhia. Era necessário ter à sua volta um grupo de pessoas numeroso e fe­liz. Pusemo-nos a freqüentar os lugares onde a juventude se reunia e lá nossa aparência e nossa idade provocavam sarcasmos. A par­tir do momento em que as estrelas come­çavam a brilhar, o medo se apoderava dele e ele lançava olhares inquietos em direção ao céu. Nem sempre fixava o mesmo pon­to No inverno era em direção ao nordeste. No verão, quase acima de nossas cabeças. No outono, voltava-se para o noroeste. E no nascer do dia era sempre para o leste. Ao cabo de dois anos pude compreender que aquele ponto mutável donde lhe vinha tan­ta angústia correspondia à constelação Co­rona Borealis.

Agora tínhamos um estúdio em Londres. Não nos separávamos nunca, e nunca mais evocávamos as coisas antigas. Os excitantes que consumíamos para nos manter desper­tos, uma certa dissolução, a tensão nervosa, tudo isso nos havia consumido. Meu amigo não tinha mais cabelos e sua barba encane­cera. Quase havíamos vencido o sono: uma hora, duas horas no máximo, cada dia. Chegou o mês de janeiro trazendo brumas e uma chuva gelada. Não tínhamos mais dinheiro para comprar excitantes, eu não esculpia mais e sofríamos muito. Certa noite meu amigo, esgotado, mergulhou em um sono profundo de que não consegui tirá-Io. Lembro-me de tudo: nosso triste sótão mergulhado na escuridão, os telhados lavados pela chuva, o tique-taque do peque­no relógio de parede, os rangidos da persia­na e, ao longe o rumor da cidade abafado pela neblina; acima de tudo, aquela respira­ção que parecia ritmar os esforços, as angustias de um espírito em viagem em direção a esferas proibidas, terrivelmente longín­quas. Um relógio bateu as horas em algum lugar; eu estava tenso, perturbado, e meus devaneios repletos de vagos temores regressavam incessantemente a seu centro: o tem­po, o espaço, o infinito. Muito além dos tetos, da neblina e da chuva, nos obscuros desertos do cosmo, Corona Borealis surgia a noroeste, aquela mesma Corona Borealis que meu amigo parecera temer tanto e cujo semicírculo de estrelas devia cintilar, invi­sível a nossos olhos, através de abismos in­transponíveis. Subitamente minhas orelhas febris foram atingidas por um outro som, por um ronronar baixo e insistente, o eco de um clamor monótono e zombeteiro, uma vibração que provinha do céu negro; um apelo que emanava de outros mundos, de muito longe, do nordeste. Mas não foi aque­le rumor sideral que marcou para sempre minha alma, imprimindo nela um terror in­sondável, e me fez soltar tais gritos que os vizinhos e a polícia acorreram para arrom­bar a porta. Não foi aquilo que eu ouvi, e sim o que vi. Pois naquele quarto escuro um facho de luz dourada e vermelha, uma luz fria, atravessou as trevas sem dispersa-­Ias, nasceu no ângulo nordeste e veio pousar­ sobre a cabeça daquele que dormia, sobre aquele rosto que então me apareceu idêntico ao da imagem-lembrança de nossa última viagem através do espaço-abismo e do tem­po dissociado, imortalmente jovem e sorri­dente, tomado por uma alegria áspera e maldita, enquanto se abriam as barreiras do insondável.

Aquele que dormia despertou, os olhos ne­gros e líquidos se contorceram, os lábios muito finos abafaram um grito por demais assustador, e naquele silêncio de agonia se­gui até suas origens o raio de luz proibida. Nesse momento sobreveio-me um ataque de epilepsia que atraiu os vizinhos e a polícia. Não posso dizer o que vi. Não posso. E o adormecido que também viu tudo aquilo e ainda muito mais, nunca mais falará. Mas agora eu me protegerei tanto quanto puder dos Mestres do Sono, do céu noturno, das loucas ambições do conhecimento e da filo­sofia.
Não sei exatamente o que se passou. Meu espírito desequilibrou-se. Mas o dos outros também creio. Dizem que jamais tive ami­go. Dizem que sempre fui só, inteira e tra­gicamente ocupado com a arte, a metafísica e a demência. Não tiveram uma palavra de piedade para com meu amigo, paralisado para sempre, imobilizado para sempre em seu canto. Mas o que eles encontraram no divã deixou-os maravilhados, ao que parece. Puseram-se a entoar louvores em meu favor, deram-me uma glória que não compreendo, uma reputação que pouco me importa no fundo de meu desespero, enquanto perma­neço sentado horas e horas, dias e dias, cal­vo, a barba grisalha, encolhido, paralisado, alquebrado, e adorando o objeto que encon­traram. Eles também olham extáticos esta coisa fria que o facho de luz zumbidora me deixou. É tudo o que resta de meu amigo. Trata-se de uma cabeça de mármore, mara­vilhosa, olímpica, de uma juventude e de uma perfeição fora do tempo, e coroada de papoulas. Dizem que este rosto é o mesmo que eu tinha aos 25 anos, Mas no pedestal um único nome acha-se .gravado em letras de traços áticos: Hypnos.

Fonte: Revista Planeta - anos 70




http://pt.wikipedia.org/wiki/Howard_Phillips_Lovecraft

Howard Phillips Lovecraft

Muitos dos trabalhos de Lovecraft foram diretamente inspirados por seus constantes pesadelos, o que contribuiu para a criação de uma obra marcada pelo subconsciente e pelo simbolismo. As suas maiores influências foram Edgar Allan Poe, por quem Lovecraft nutria profunda afeição, e Lord Dunsany, cujas narrativas de fantasia inpiraram as suas histórias em terras de sonho. Suas constantes referências, em seus textos, a horrores antigos e a monstros e divindades ancestrais acabaram por gerar algo análogo a uma mitologia, hoje vulgarmente chamada Cthulhu Mythos, contendo vários panteões de seres extradimensionais tão poderosos que eram ou podiam ser considerados deuses, e que reinaram sobre a Terra milhões de anos atrás. Entre outras coisas, alguns dos seres teriam sido os responsáveis pela criação da raça humana e teriam uma intervenção directa em toda a história do universo.
A expressão Cthulhu Mythos foi criada, após a morte de Lovecraft, pelo escritor
August Derleth, um dos muitos escritores a basearem suas histórias nos mitos deste. Lovecraft criou também um dos mais famosos e explorados artefactos das histórias de terror, o Necronomicon, um fictício livro de invocação de demônios escrito pelo, também fictício, Abdul Alhazred, sendo até hoje popular o mito da existência real deste livro, fomentado especialmente pela publicação de vários falsos Necronomicons e por um texto, da autoria do próprio Lovecraft, explicando a sua origem e percurso histórico.


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